Prof. Sandro Marino Duarte *
INTRODUÇÃO
O
direito se serve das chamadas “presunções”, no sentido de buscar o entendimento
sobre determinada questão, mediante um fato conhecido, para reconhecer a
existência ou os efeitos de um fato desconhecido. Em linguagem menos acadêmica,
é reconhecer que os fenômenos semelhantes geralmente funcionarão de maneira
igual ou terão os mesmos efeitos.
Tal
ficção jurídica há muito vem sendo utilizada em nosso direito. No Direito Civil e no Processual Civil
atuais, merece acolhida expressa (de forma genérica) no inc. V do art. 136 do
CCB “antigo” (nesta data ainda vigente), no art. 335 do CPC e inc. IV do art. 212 do CCB “novo”.
Neste
pequeno escrito, procurar-se-á dar ênfase ao estudo da mais interessante das
formas de presunção, a hominis, ou do
homem, fazendo, para tanto, uma incursão no Direito Canônico, sem deixar de
discorrer sucintamente, para melhor entendimento, sobre a presunção em geral e
demais espécies.
PARTE
PRIMEIRA --
IDÉIA DE PRESUNÇÃO
A
idéia de presunção é ter por verdadeira
alguma coisa até que se prove o contrário. Assim, antes do sentimento ou da
percepção em contrário, tem-se por existente a coisa. Por exemplo, se nosso CCB atual reconhece às
pessoas de 21 anos completos discernimento para a vida civil, qualquer pessoa
nessa categoria, até prova em contrário,
é presumivelmente capaz. Se quero o reconhecimento de que alguém nessa faixa de
idade não é capaz para os atos da vida civil, devo oferecer provas suficientes
para que, ilidida a presunção, seja declarada sua incapacidade.
“A
própria palavra presunção indica a sua natureza (...) porque logo se conhece
que é mister pôr em exercício a razão a fim de se chegar ao descobrimento dos
fatos cuja existência se investiga...”.1
PARTE
SEGUNDA - TIPOS DE PRESUNÇÃO;
A PRESUNÇÃO LEGAL E SUAS
ESPÉCIES
A doutrina de há muito concorda com a existência
de dois tipos de presunção: a legal e a hominis.
A
presunção legal subdivide-se em duas espécies: presunção juris tantum e presunção juris
et de jure (ou jure et de jure
como grafam alguns). Essa divisão é a que melhor se ajusta à lógica da ficção
jurídica ora em estudo, razão por que deixam de ser abordadas outras divisões
apresentadas pela doutrina.
Faz-se
necessária uma pequena abordagem da presunção legal e suas espécies para melhor
entendimento global da matéria.
Como
o próprio nome já faz adivinhar, é legal a presunção quando disposta em lei, em
ordenamento positivo. Nesse sentido, há vários exemplos em nossa legislação
positiva.
Quer
o legislador, com essa técnica, fixar que deve ser tida inicialmente como
verdadeira determinada situação que ele descreve no ordenamento jurídico. Assim
sendo, por exemplo, quando dispõe nosso legislador do CCB de 1916 que os filhos
havidos de mulher casada são de seu marido, e a este cabe contestá-los, faz
presunção legal (vide art. 344). Outrossim, cria a mesma situação, ao presumir,
no art. 1.094 do mesmo código, o acordo final e a obrigatoriedade do contrato
quando uma das partes em contrato de compra e venda dá a outra o sinal ou
arras.
Porém,
há uma importante diferença entre as espécies de presunção legal, acima
mencionadas.
A
denominada presunção juris tantum
permite a utilização de prova em contrário para ilidi-la. Portanto, se a
legislação admite presunção de veracidade em relação a determinados efeitos
provenientes de relação jurídica, também determinada, a despeito do ordenamento
positivo, pode-se produzir prova em contrário, realizando-se o intento de fazer
que a lei não incida sobre aquele determinado caso concreto e provando-se que a
relação jurídica não existiu, ou seus efeitos não foram aqueles que a
legislação teve por presumivelmente apuráveis.
Diferentemente,
a chamada presunção juris et de jure
não admite prova em contrário em relação aos efeitos. Significa dizer que o
ordenamento positivo é taxativo no sentido de ter como veraz determinados
efeitos provenientes de relação jurídica também determinada, não admitindo
contestação a não ser, obviamente, em relação à própria existência da relação jurídica.
Ou seja, não pode haver contestação dos efeitos, mas somente da existência da
relação jurídica que teria dado causa a eles.
O
problema é como distinguir tais presunções diante do ordenamento positivo.
Geralmente,
o legislador, quando quer que determinada presunção legal admita prova em
contrário, usa da redação “salvo prova em contrário” no próprio texto legal,
como, por exemplo, no parágrafo único do art. 490 do CCB de 1916. Entretanto, não é impossível verificar-se a
ausência da expressão diante de presunção juris
tantum, como no art. 890 do mesmo código, em que há a presunção de que, em
pluralidade de devedores e/ou credores, a obrigação será dividida em tantas
obrigações iguais e distintas tal qual o número de devedores e/ou credores.
Assim,
se o entendimento teórico dessas presunções é relativamente fácil, a recíproca
não é verdadeira para sua aplicação prática.
Pode-se tomar como norte a matéria tratada (se de ordem pública ou
privada). Para oferecer um tempero maior aos que se interessarem pela matéria,
muitos admitem a existência de grau intermediário entre as presunções juris tantum e juris et de jure, as denominadas presunções intermédias, que, em princípio, são jure, mas, em condições previamente determinadas na lei, admitem
prova em contrário e têm efeito tantum.
Assim, aos mais curiosos fica a deixa para um estudo mais aprofundado, não se
alongando mais a discussão por fugir ao tema principal do presente escrito, o
qual se passa a abordar abaixo.
PARTE
TERCEIRA - A PRESUNÇÃO HOMINIS
A presunção hominis
não está na lei, mas, efetivamente, no homem, significando o ser humano como
idéia e coletividade, não como indivíduo. Até a presente data, nenhum escrito
convence que não foi invenção do Direito Canônico tal tipo de presunção, não
sendo temerário afirmar-se que até os demais tipos talvez tenham tido pelo
menos a sofisticação técnica que se observa hoje no Direito Canônico.
É
a presunção que se funda na experiência de vida, no fato comum, na “sabedoria
popular”, no que geralmente se pensa, no espírito de um povo, na alma comum, no que define o homem.
É
a presunção utilizada pelo julgador para formar sua convicção quando esta não
pode respaldar-se em normas jurídicas. Está, portanto, intimamente ligada ao
Direito Processual na prática, e, efetivamente, o já citado art. 335 do CPC
vigente a acolhe sem sombra de dúvida:
“Art. 335. Em falta de normas jurídicas particulares, o
juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do
que ordinariamente acontece e ainda as regras de experiência técnica,
ressalvado, quanto a esta, o exame pericial.”
Não há, porém, como se estudar essa presunção sem
uma pequena informação sobre sua fonte remota.
O
Direito Canônico, é interessante ressaltar, tem existência muito mais antiga do
que sua codificação, que só se deu em 1983, havendo uma consolidação de leis
canônicas em 1917. A idéia de presunção hominis
em relação à época em que efetivamente apareceu está perdida no tempo. Entretanto, desde a Consolidação de 1917,
verifica-se sua inclusão em um ordenamento positivo canônico mais ordenado:
“Cân.
1.825 – Presunção é a conjectura provável de uma coisa incerta; é juris
a que é estabelecida pela própria lei; é
hominis a que é conjecturada pelo
juiz.
Cân.
1.828 – O juiz não conjecture presunções não determinadas pelo direito, senão
dum fato certo e concreto diretamente conexo com o objeto da controvérsia.”
No Código de Direito Canônico de 1983, ora
vigente, o cân. 1.584 repete o texto do cân. 1.825 da Consolidação de 1917,
fazendo o mesmo o cân. 1.586 em relação ao cân. 1.828.
Mas,
por que é canônico o direito provindo da Igreja Católica? Não é despicienda, outrossim, uma pequena explicação.
Cânon
ou cânone, do latim canon, significa
lei, regulamento, regra, bitola, medida. Daí, canônico, do latim canonicus, significar consoante à regra,
ao regulamento, à medida. Os doutores da Igreja que se dedicavam a produzir as
regras atinentes ao fiéis foram, por via de conseqüência, denominados
“canonistas” e o direito positivo resultante de seus estudos, canônico.
É
clara a idéia do Direito Canônico – e do nosso Direito positivo – no sentido de
reservar o deslinde da questão ao arbítrio de um julgador, quando não há legislação positiva mandando em contrário e quando houver possibilidade de firmar convicção
mediante as regras de experiência de fatos conexos com o fato concreto que está
julgando.
Sendo
técnica importantíssima, pode-se afirmar que é indispensável a um sentido
prático dos julgamentos.
Num
fato provado apenas por testemunhas em um mundo processual em que não existisse
a idéia de presunção hominis, pode-se
verificar a importância prática de tal ficção jurídica. Em uma justiça
especializada como a Justiça do Trabalho, por exemplo, a que se socorreria o
julgador para efetivamente pesar a veracidade do testemunho em um processo em
que, normalmente, é a única prova que se produz? Somente a experiência, com o
conseqüente uso da presunção hominis,
e não poucas vezes, levará o julgador a não cometer desacertos.
Outrossim,
em sede de defesa do consumidor, vê-se outro exemplo prático do uso da
presunção hominis, sendo
importantíssima a utilização das regras de experiência em uma relação
processual litigiosa em que, na prática, se vê o magistrado diante de produção
oral de provas, levando o mesmo magistrado a ter de utilizar sua experiência
quanto ao que ordinariamente acontece.
Assim,
se a lei socorre o juiz com as presunções legais, as regras sobre a produção de
provas et coetera, ainda resta um
enorme hiato para que, em grande parte das causas, haja o convencimento para
julgar desta ou daquela maneira. Em última análise, é disto mesmo que a
presunção hominis trata: da
possibilidade real de um juiz poder formar
sua convicção, sendo praticamente impossível tal campo ser abrangido pela
legislação positiva.
É
mesmo um sentido de liberdade, uma verdadeira “democracia processual”. É a possibilidade de, movendo-nos no “império
da lei”, não sermos injustiçados por sua rigidez, fugindo daquela opinião de
Robespierre, que afirmava que, em um Estado que tem legislação, a
jurisprudência dos tribunais é a lei e não outra coisa.
“Quando
o legislador estabeleceu ficções, já violentou, até certo ponto, a realidade.
Seria absurdo que enchesse de presunções de direito e de ficções, criações
suas, o espaço que pertence à matéria da vida, à realidade do vivido. Na parte,
imensa, que a lei respeitou, ainda o juiz, pela condição mesma do homem,
procura o quod plerumque fit, para
apreciar as provas feitas. A lei não lhe impõe tais presunções. Por isso mesmo
não são presunções de direito. O juiz busca-as.”2
CONCLUSÃO
A despeito do caráter exíguo do presente estudo,
pode-se verificar a enorme importância da ficção jurídica denominada presunção hominis para a prática processual e para
a possibilidade mesma de que haja a formação da convicção do julgador. Este, ser humano, é passível de errar, de
levar-se por preconceitos, de ter uma percepção errada das coisas. Mas, não se
diga, graças à técnica da presunção hominis,
que não teve a chance de acertar.
BIBLIOGRAFIA
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